AMAR NA MARÉ

PROJETO ENTIDADE MARÉ. Amar na Maré. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 15, p. 10-17, dez. 2021.

Texto e imagens do Projeto Entidade Maré

O que você sabe sobre os LGBTQIA+ da Maré? Um grupo de artistas moradoras do complexo de favelas no Rio de Janeiro se debruça sobre a memória coletiva para transpor abismos territoriais e de gênero.

 

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Quando falamos da Maré, um dos maiores conjuntos de favelas do Brasil, a primeira coisa que vem à mente é a imagem histórica de palafitas fincadas em uma terra que, na verdade, é água. Em uma época em que o Estado não tinha um planejamento para as periferias e a única política de moradia era a remoção, a Maré se estabelecia fincando suas estruturas sobre as águas: este é o primeiro marco de existência do lugar onde vivemos e onde criamos o Projeto Entidade Maré. E, assim como esse território, nossa origem começa com o gesto de fincar estruturas no amor, as águas por onde todas precisamos navegar.

Como pessoas negras, faveladas e LGBTQIA+, o que nos uniu foi o amor aos nossos corpos, que não está dado, e que precisa ser reinventado por causa dos múltiplos apagamentos que sempre vivenciamos. Somos um grupo de artistas moradoras desse complexo enorme de dezesseis favelas no Rio de Janeiro, com o interesse comum na memória e na oralidade relacionadas aos corpos LGBTQIA+ e na vontade de pensar um canal de comunicação em que disparássemos narrativas sobre estes corpos, nos apropriando das experiências deles por meio da arte. Desde o início, fomos guiadas pela certeza de que retomar a história desses corpos dentro da Maré é uma declaração de amor às nossas experiências, já que as narrativas daquelas que passaram por aqui antes de nós são também as nossas agora.

O que você sabe sobre os LGBTQIA+ da Maré? – era a pergunta que fazíamos em nossas investigações diante da falta de dados e documentos sobre a trajetória dessa comunidade dentro da comunidade. O último Censo realizado na Maré aconteceu em 2019, a partir de uma ação de organizações não governamentais do próprio território. E dentro das informações levantadas – num trabalho que, diga-se, deveria ter sido conduzido pelo poder público – não existia nada sobre a população LGBTQIA+, o que diz muito sobre como a narrativa da Maré ainda é elaborada dentro de uma dinâmica heterossexual, heteronormativa e cis-colonial, em que as histórias LGBTQIA+, principalmente negras, não aparecem.

A ideia de que o homem heterossexual é o centro de tudo simplesmente não nos cabe. Ela foi normalizada com tanta naturalidade, que às vezes esquecemos que ela nos foi imposta junto com a colonização, que sempre ditou os parâmetros da civilidade fundados no binarismo entre homem e mulher. Nós, pessoas gays, lésbicas, travestis e transexuais não fazemos parte dessa narrativa colonial e excludente que justifica a diferenciação entre eles (os colonizadores, homens, cis, hétero) e todos os múltiplos outros. Preferimos escavar a nossa memória e tocar nos aspectos cosmopoéticos que se atrelam às dinâmicas das culturas africanas e indígenas, que são nossa verdadeira origem. Como é possível que ainda estejamos discutindo gênero no Brasil, sendo que algumas comunidades indígenas, que já viviam aqui antes dessa porra toda chegar, tinham mais de dezesseis gêneros? Quem é que está atrasado?

De dentro da favela, nós somos um embate a essa narrativa, com uma dupla dificuldade: somos LGBTQIA+, mas também somos periféricas e por isso vivenciamos com ainda mais força as experimentações de extermínio e epistemicídio. Tudo o que é produzido aqui em termos de cultura é duplamente folclorizado ou marginalizado e esquecido pela história oficial. Apesar de encontrarmos vários registros da história dos movimentos LGBTQIA+ do Rio de Janeiro, não há nada escrito sobre as manifestações culturais que aconteceram dentro da Maré. Vivemos cotidianamente um abismo de gênero reforçado por um abismo territorial, sistemático e histórico – contra os quais sentimos a necessidade de lutar.

 

Depois que começamos a ir em busca de histórias e dados sobre a comunidade LGBTQIA+ da Maré e suas práticas culturais, não demorou muito para o Projeto Entidade Maré ganhar corpo naturalmente, talvez pelo fato de nos vermos como Exus urbanos – e Exu abre caminho, mesmo! Fomos atrás de pessoas LGBTQIA+ famosas na comunidade e, de repente, até nossas famílias viraram pesquisadoras. Uma ia ligando para a outra, achando o contato de uma amiga que conhecia alguém, e as pontes foram sendo tecidas de maneira surreal nesse invisível. As pessoas começaram a mandar áudios, enviar vídeos, compartilhar CDs com fotos incríveis: a necessidade de uma criação historiográfica coletiva sobre essa parte da população da Maré, que nunca está contemplada dentro dos recortes oficiais, vai fazendo a comunidade se tornar parceira na construção dessa narrativa – que, apesar da invisibilidade, está aqui, viva, sendo tecida dia após dia neste território.

Logo nas primeiras conversas com a Soraia, uma travesti que é nossa vizinha, percebemos a importância de retomar as histórias da Noite das Estrelas, uma série de shows que aconteciam na Maré nos anos 1980 e 1990, protagonizados por uma mistura de mulheres transexuais e heterosexuais, travestis, homens cis gays e mulheres lésbicas. Antes de se tornarem emblemáticas e lotarem as ruas da Maré, essas performances aconteciam no convívio das lajes, das festas em casa, nas reuniões de pessoas LGBTQIA+ que se encontravam para se divertir. Elas, porém, logo extrapolaram o espaço doméstico e se tornaram espetáculos para toda a favela, nos quais as gatas montavam um palco em cima de mesas e caixotes e faziam seus shows de dublagem, com peruca e figurino completo.

Os shows começam a se tornar públicos durante as festas juninas da Nova Holanda e da Rubens Vaz, organizadas pelo Ney, um morador que queria agradar suas amigas travestis como agradecimento por elas sempre ajudarem a costurar as roupas de quadrilha. Essas apresentações vão se expandindo pelo território até que o Menga, uma bixa da Maré, as oficializa, criando a Noite das Estrelas. À medida que o jogo vai se ampliando e ficando sério, o próprio tráfico começa a convidá-las para fazer shows nas ruas, que, inclusive, vão movimentar fortemente o comércio local. O evento ficou tão conhecido, que o primeiro baile funk da Maré com a famosa Furacão 2000 foi trazido pela Noite das Estrelas. Os shows aconteciam em todos os lugares: durante as festas juninas, junto ao carnaval, depois dos campeonatos de futebol e dentro das escolas (com as travestis de peito de fora e as crianças vendo, sem que aquilo causasse um apavoramento). Havia um sentimento de comunidade muito forte, porque os shows não se fechavam nas pessoas LGBTQIA+, conectando também a vizinhança. Nossas avós, mães, nossos tios, primos, todo mundo conhecia e frequentava.

Por agregar muita gente da favela, a Noite das Estrelas era uma verdadeira potência transdisciplinar de cultura, que atravessava múltiplos espaços e experiências, envolvendo charme, escola de samba, candomblé, axé, regionalidade nordestina e festa junina. Era uma forma de esses corpos excluídos construírem uma representatividade através da performance e da arte, que ainda pulsa pelas ruas da Maré e vive na memória de suas moradoras e seus moradores. Por que então essa cultura não está escrita e não é vista, mesmo sendo tão forte e importante para tanta gente?

 

Para nós, existir é ser revolucionário. A existência de um corpo negro LGBTQIA+ em um território como a Maré não é simplória, é revolucionária. Quando a pensadora negra Beatriz Nascimento traça a experiência dos nossos corpos em relação ao Atlântico em seus trabalhos, ela chama a atenção para a fuga, que é o primeiro movimento do corpo que não quer ser dominado. Na fuga estão o desconhecido, a violência da possibilidade de ser pego, mas também a subjetividade de alguém que não quer deixar de sonhar. Isso também faz parte da nossa experiência coletiva: existir dentro da Maré é resistir em comunidade, é ser muito amiga e partilhar uma coletividade que é anterior a nós, que está na memória das nossas mães, das nossas famílias e das pessoas que manifestavam sua arte LGBTQIA+ nas ruas da favela.

Existir na Maré é viver brigando com o boy que nos chama de viado quando passamos, é resistir ao planejamento de extermínio e exotização das nossas experiências. É também reelaborar as relações de viver quando saímos da favela, porque existem muitas esferas de segurança que a Maré nos dá e que não existem fora daqui. Apesar de toda a construção cotidiana da Maré como um espaço de violência, nós não vivemos essa violência diariamente. Aqui ninguém vai roubar nosso carro ou nossa casa. Hoje em dia, talvez seja diferente por conta do momento político. Vivemos mudanças políticas que de fato interferem no nosso cotidiano – as próprias estratégias de segurança pública mudam, inclusive, a interação entre o tráfico e os moradores. Não estamos, contudo, respondendo a essa estratégia de extermínio cotidiano, estamos vivendo. Porque naturalmente a elaboração de viver está em nossos corpos.

A gente tem amigos, a gente come, a gente sangra, a gente goza e a gente adora gozar. Talvez seja isso que nos diferencie das outras pessoas. As negras LGBTQIA+ não têm vergonha de dizer que adoram gozar. O binarismo entre homem e mulher nos impõe um modelo muito sem graça de viver as relações afetivas e sexuais. Coitadinhas das pessoas que vivem dessa forma, deve ser muito solitário e frustrante, porque tudo tem que dar certo o tempo todo. Na nossa experiência, podemos errar, porque não temos um modelo: o modelo somos nós que estamos criando. Como diria a escritora Audre Lorde, nesse lugar de ser o outro, nós podemos ser um monte de coisas que não cabem na norma. Nós vivemos muita coisa que não cabe nem dentro e nem fora da Maré.

Se existe uma dificuldade de aceitação da vivência de outros corpos, ela se deve também à inexistência de dados sobre essas populações. A filósofa Sueli Carneiro colocou, em 1987, que a população negra não era incluída nos dados do IBGE, que era quase impossível entender como ela se sentia, o que ela fazia, com o que ela trabalhava – e nós vivemos isso até hoje. Essas informações, por direito, deveriam estar estruturadas na nossa Constituição e nas nossas relações de direitos humanos, mas o Brasil ainda é o país que mais mata pessoas LGBTQIA+, e é o país que mais mata a população negra do seu território. E nós somos esses corpos! As populações pretas estão encarceradas ou nas periferias. Nós estamos na periferia, dentro de uma área que poderia, que deveria ser considerada como centro. O que a Maré gera de renda para o Rio de Janeiro é, às vezes, o triplo do que algumas cidades do estado geram. Isso é um planejamento de extermínio muito difícil de elaborar, e é por isso que o foco do Projeto Entidade Maré é apresentar uma escrita territorial LGBTQIA+ da Maré através dos cruzamentos entre grafias orais, culturais, performáticas e socioeconômicas dessa população da qual fazemos parte.

 

Quando retomamos a história de manifestações culturais como a Noite das Estrelas na década de 1980 e de suas protagonistas, de alguma forma estamos acionando um dispositivo de ancestralidade para corpos LGBTQIA+ negros e favelados que é ainda mais difícil de acessar que a ancestralidade negra heterossexual. E por estarmos dentro da Maré e sermos esses corpos, essa retomada histórica não incorpora um distanciamento tão presente dentro das pesquisas antropológicas e sociológicas que costumam realizar sobre nós. Estamos falando de uma pesquisa que se investiga no coletivo.

Essa história e essa trajetória são nossas, e ainda que estejamos escrevendo sobre elas, elas foram escritas antes de nós. Somos apenas um canal de reconhecimento dessa narrativa que se coletiviza e se aprofunda à medida que tecemos redes de afeto dentro da comunidade. É lindo poder, por exemplo, sentir que fazemos parte da mesma trajetória traçada pela Gilmara, que é uma travesti que ganhou uma medalha de honraria do Rio de Janeiro pelo trabalho dela. Foi ela quem criou o Conexão G de Cidadania LGBTQIA+ de Favelas, a única instituição em espaços de favela que busca políticas públicas de acesso à cidadania e discute os direitos desta população.

O Conexão G surgiu em 2006 e hoje tem uma importância grande para a Maré, porque consegue construir um lugar de acesso a alguns direitos básicos que acabam sendo negados à população LGBTQIA+ nas favelas. Ali, o pessoal oferece cursos profissionalizantes e serviços gratuitos de assistência jurídica, social e psicológica. Como a Gilmara sempre diz, enquanto a população LGBTQIA+ de fora está lutando por direito a casamento, esta mesma população, daqui de dentro da Maré, está lutando pela vida – e sem um órgão público que de fato vá atender às suas necessidades mais básicas.

Estamos falando de um território enorme com barreiras invisíveis impostas pelo tráfico, pela falta de políticas públicas e por essa estrutura opressora que quer nos matar – mas continuamos resistindo. A Maré é um dos poucos territórios do Rio de Janeiro que têm duas paradas LGBTQIA+. Temos o Conexão G, grupos de teatro operando plenamente, as balls – que são competições de performance – e várias outras experiências artísticas. Hoje temos duas casas que acolhem essa população e que estão movimentando cultura: a gente se conhece, a gente se vê. Podemos dizer que conhecemos mais de cem artistas LGBTQIA+ negros e negras aqui na Maré. Convivemos o tempo todo, nós existimos nas experiências delas, e elas existem nas nossas experiências – desde sempre.

Quando o Deley, que era pai de santo, fazia shows nos anos 1980, ele organizava um desfile na rua dele, saindo com as fantasias de carnaval. Ele era destaque de carnaval, então não era qualquer fantasia! A rua inteira participava desse evento, que na verdade era só uma bixa saindo de casa toda fantasiada. E é bonito ver como essas pessoas – como o Deley, a Gilmara, a Pantera, a Madame, a Mila, a Dominique e tantas outras –, que estavam aqui, vivendo esse momento específico da história, se conectam com a gente, com esse grupo que, décadas depois, está pensando, trazendo e revivendo essas narrativas.

A luta dessas gatas e o legado que elas construíram é só um caminho, entre tantos outros, que aponta para uma história que precisa ser contada coletivamente. Suas trajetórias nos fazem reconhecer que de um corpo LGBTQIA+ na Maré explodem narrativas que a história oficial não domina, e que ampliar cada vez mais a rede destas narrativas é uma forma de acabar com a pasteurização da nossa vivência. Traçar um caminho por onde essas pessoas passaram – e por onde agora nós passamos, vivendo de um jeito diferente –, é pegar essa história pelo laço e não deixá-la morrer. É contá-la de novo, através da costura de narrativas que já estavam sendo criadas e faladas há muito tempo.

 

Quando alguém como a Gilmara – e tantas outras monas que fizeram história na Maré – ganha uma medalha de honraria do Rio de Janeiro, isso nos atravessa de uma forma que nem conseguimos traduzir. É muito potente, principalmente por se tratar de corpos para os quais está desenhado um projeto de vida que na verdade é a morte. A gente olha para todos os lados e é a morte que está desenhada sobre nós, e é por isso que reconhecer o trabalho dessas pessoas é também uma estratégia política de vida, de como vamos sobreviver, de como vamos existir no futuro.

A artista Jota Mombaça diz uma coisa muito linda, que sempre repetimos: o Brasil é o país que mais mata pessoas LGBTQIA+, mas, apesar dessa insistência em nos matar, há algo em nós que não morre. Isto nós sentimos todos os dias: eles não conseguem nos matar, há sempre algo em nós que fica, quer eles queiram ou não. E, de fato, parece que tudo o que as monas da Maré viveram antigamente nós também vivemos hoje, desde os medos, as conquistas, as reivindicações, até o modo de fazer cultura. A Noite das Estrelas começou a partir das festas das bixas na laje, que é algo que nós fazemos até hoje! Estamos nos apropriando do que a pesquisadora Leda Martins chama de “oralitura”, que é a performance que está no corpo, uma escrita territorial da Maré feita por corpos LGBTQIA+ que é ancestral e está muito além da nossa compreensão. Nossos corpos falam mais do que nós imaginamos, do que nós podemos dominar, porque eles foram elaborados antes. Eles fazem parte dessa comunidade dos sonhos de quem foi escravizado, de quem foi agredido e morto por assumir sua existência.

A história oficial do movimento LGBTQIA+ no mundo se inicia na década de 1950, e em 1980, em uma das favelas da Maré, temos movimentos como a Noite das Estrelas trazendo a potência do corpo LGBTQIA+ para o espaço público. As ruas estavam sendo ocupadas e pleiteadas por esses corpos, sem que eles fossem rechaçados. Pelo contrário, esses corpos eram ovacionados! As pessoas que estavam naqueles palcos montados por elas mesmas estavam sendo ovacionadas por crianças, idosos, jovens, homens, mulheres, traficantes e comerciantes. É muito intenso e é muito foda saber que movimentos como esse existiram e podem ainda ser acessados pelas figuras vivas da nossa comunidade. E também pelas figuras que, infelizmente, fizeram a passagem, mas que estão aqui, do nosso lado, nos guiando. Isso é ancestralidade na veia!

Nossa ancestralidade não passa só por pessoas negras que foram escravizadas. Ela passa pelas pessoas LGBTQIA+ que viveram antes de nós, e justamente pelo fato de elas terem vivido antes, nós vivemos hoje. Só podemos estar aqui hoje porque elas viveram e resistiram a inúmeras situações de violência. Nossa ancestralidade vai muito além de nossas mães, nossas avós e bisavós; ela vem também de quem construiu o mundo para que nós pudéssemos estar nele. Todas essas figuras gays, transexuais, travestis e lésbicas que desfilavam e arrasavam pelas ruas da Maré são nossas ancestrais. Elas podem não ter nenhuma relação carnal ou sanguínea conosco, mas fazem parte de uma aliança construída através do amor a nossos corpos. Graças a elas, nós podemos hoje dizer abertamente que somos negras, faveladas, macumbeiras, sapatonas, gays, travestis… e está tudo bem! Nós somos esses corpos e ninguém vai nos tirar isto, porque ninguém nos tira o que somos. Para nós é fundamental saber que essas pessoas existiram antes de nós, amaram antes de nós, lutaram antes de nós e traçaram caminhos para que possamos continuar seguindo. Há muito poder na nossa história – um poder que temos o dever de mediar, articular, agregar, expandir e, obviamente, reivindicar.